Noonday Rest. - John William Godward  


 
 

 

 

Bem no Fundo

 

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

 

 

 

Apagar-me

 

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.

 

 

Eu

 

Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro de meu centro
este poema me olha

 

 

Amor Bastante
 

Quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante basta um instante
e você tem amor bastante um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

 

 

Ali

 


ali

ali
se
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse
se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece.

 

 

Um homem com uma dor

 

Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante.

 

 

Acordei Bemol

 

Acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido.

 

 

um bom poema leva anos

 cinco jogando bola,

mais cinco estudando sânscrito,

seis carregando pedra,

nove namorando a vizinha,

sete levando porrada,

quatro andando sozinho,

três mudando de cidade,

dez trocando de assunto,

uma eternidade,

eu e você, caminhando junto.

 

 

nunca cometo o mesmo erro duas vezes

 já cometo duas

 três

quatro

cinco

seis

até esse erro aprender que só o erro tem vez.

 

 

Profissão de Febre

 

quando chove, eu chovo,

faz sol, eu faço,

de noite, anoiteço,

tem deus, eu rezo,

não tem, esqueço,

chove de novo, de novo, chovo,

assobio no vento, daqui me vejo,

lá vou eu, gesto no movimento

 

 

Epitáfio para o corpo

 

Aqui jaz um grande poeta.

Nada deixou escrito.

Este silêncio, acredito, são suas obras completas.

 

Epitáfio para alma

 

aqui jaz um artista

mestre em desastres

viver com a intensidade da arte

levou-o ao infarte deus

tenha pena dos seus disfarces

 

 

Eu queria tanto

 

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois.

 

 

Lembrem de Mim

 

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,

entre a pressa e a preguiça.

 

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.

 

 

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

 

 

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores

 

 

uma carta uma brasa através
por dentro do texto
nuvem cheia da minha chuva
cruza o deserto por mim
a montanha caminha
o mar entre os dois
uma sílaba um soluço
um sim um não um ai
sinais dizendo nós
quando não estamos mais

 

A Lua no Cinema

 

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

 

 

Sujeito Indireto

 

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.

 



 

 

Paulo Leminski

(1944-1989)

 

Paulo Leminski, nascido em Curitiba/PR em 24 de agosto de 1944, foi poeta e tradutor. Passou a infância no interior de Santa Catarina, mas escolheu Curitiba para viver. Foi professor de história e redação, diretor de criação, redator de publicidade e colaborador do caderno Folhetim, da Folha de São Paulo. Seus primeiros poemas foram publicados na revista Invenção, em 1964, então porta-voz da poesia concreta paulista. A partir daí, seus textos passaram a ser publicados em inúmeros jornais e revistas de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Fez, ainda, resenhas de livros de poesia para a revista Veja. Em 1976, publicou Catatau. Em seguida, veio Caprichos e relaxos (1983), Agora é que são elas (1984), La vie en close (1991), além de traduções como Folhas das folhas da relva (1983), de Walt Whitman, e Supermacho (1985), de Alfred Jarry. Morreu em 07 de junho de 1989.

 

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft


 

 

 

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