Reflexão nº 1
Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se
banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas
vezes a mesma mulher.
Deus de onde
tudo deriva
E a circulação
e o movimento infinito.
Ainda não
estamos habituados com o mundo
Nascer é muito
comprido.

Gilda
Não ponha o
nome de Gilda
na sua filha,
coitada,
Se tem filha
pra nascer
Ou filha pra
batisar.
Minha mãe se
chama Gilda,
Não se casou
com meu pai.
Sempre lhe
sobra desgraça,
Não tem tempo
de escolher.
Também eu me
chamo Gilda,
E, pra dizer a
verdade
Sou pouco mais
infeliz.
Sou menos do
que mulher,
Sou uma mulher
qualquer.
Ando à-toa
pelo mundo.
Sem força pra
me matar.
Minha filha é
também Gilda,
Pro costume
não perder
É casada com o
espelho
E amigada com
o José.
Qualquer dia
Gilda foge
Ou se mata em
Paquetá
Com José ou
sem José.
Já comprei
lenço de renda
Pra chorar com
mais apuro
E aos jornais
telefonei.
Se Gilda enfim
não morrer,
Se Gilda tiver
uma filha
Não põe o nome
de Gilda,
Na menina, que
não deixo.
Quem ganha o
nome de Gilda
Vira Gilda sem
querer.
Não ponha o
nome de Gilda
No corpo de
uma mulher.

O Utopista
Ele acredita que o chão é duro
Que todos os
homens estão presos
Que há limites
para a poesia
Que não há
sorrisos nas crianças
Nem amor nas
mulheres
Que só de pão
vive o homem
Que não há um
outro mundo.

O
Filho do Século
Nunca mais
andarei de bicicleta
Nem
conversarei no portão
Com meninas de
cabelos cacheados
Adeus valsa
"Danúbio Azul"
Adeus tardes
preguiçosas
Adeus cheiros
do mundo sambas
Adeus puro
amor
Atirei ao fogo
a medalhinha da Virgem
Não tenho
forças para gritar um grande grito
Cairei no chão
do século vinte
Aguardem-me lá
fora
As multidões
famintas justiceiras
Sujeitos com
gases venenosos
É a hora das
barricadas
É a hora da
fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem
vingança
Os mortos
minerais vegetais pedem vingança
É a hora do
protesto geral
É a hora dos
vôos destruidores
É a hora das
barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos
ânsias sonhos perdidos,
Misérias de
todos os países uni-vos
Fogem a galope
os anjos-aviões
Carregando o
cálice da esperança
Tempo espaço
firmes porque me abandonastes.

Candiga de Malazerde
Eu sou o olhar
que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo
da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo
nada que tenha visto,
todas as
coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas
flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as
casas penduradas na terra,
tiro os
cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as
consciências,
a rua estala
com os meus passos,
e ando nos
quatro cantos da vida.
Consolo o
herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar
ninguém porque sou o amor,
tenho me
surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir
desculpas ao mendigo.
Sou o espírito
que assiste à Criação
e que bole em
todas as almas que encontra.
Múltiplo,
desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa
nos caminhos do mundo.

Modinha do Empregado de Banco
Eu sou triste
como um prático de farmácia,
sou quase tão
triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia
inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o
tectec das máquinas de escrever.
Lá fora chove
e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas
meninas pela vida afora!
E eu alinhando
no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse
estes contos punha a andar
a roda da
imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses
do Banco
que não fazem
nada com estes contos!
Chocam
outros contos para não fazerem nada com eles.
Também se o
diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não
existiria mais
e eu estaria
noutro lugar.

Canção do Exílio
Minha terra
tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres
de ametista, os sargentos do exército são monistas,
cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir com os oradores e os
pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a
Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais
gostosas mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me
dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com
certidão de idade!

Tesoura de Toledo
Com seus
elementos de Europa e África, Seu corte, inscrição e
esmalte, A tesoura de Toledo Alude às duas
Espanhas. Duas folhas que se encaixam, Se abrem, se
desajustam, Medem as garras afiadas: Finura e rudeza de
Espanha, Rigor atento ao real, Silêncio espreitante,
feroz, Silêncio de metal agindo, Aguda obstinação Em
situar o concreto, Em abrir e fechar o espaço, Talhando
simultaneamente Europa e África, Vida e
morte.

Murilo Menino
Eu quero
montar o vento em pêlo, Força do céu, cavalo poderoso Que
viaja quando entende, noite e dia.
Quero ouvir a flauta
sem fim do Isidoro da flauta, Quero que o preto velho
Isidoro Dê um concerto com minhas primas ao piano, Lá no
salão azul da baronesa.
Quero conhecer a
mãe-d'água Que no claro do rio penteia os cabelos Com um
pente de sete cores.
Salve salve minha rainha, Ó
clemente ó piedosa ó doce Virgem Maria, ? Como pode uma
rainha ser também advogada.

Murilo
Mendes
(1901-1975)
Murilo Mendes, nasceu em Juiz de Fora,
Minas Gerais, e morreu em Lisboa.
Entre 1930-1950, a obra de Murilo Mendes
é surrealista e modernista, cheia de dualidades: "a mistura do
sagrado e mundano, sexualidade e humor, coloquialismo e
alusões religiosas", nas palavras do próprio autor. De 1950 a
1970, é mais experimental na forma, com versos fragmentários
mas já alcançando a comunhão dos opostos: objetivo e
subjetivo. Toda sua poesia tem emoção e mergulho conceitual:
Poemas (1930), A poesia em pânico (1938),
Tempo espanhol (1959), Convergência (1970). Fez
muitas amizades no mundo artístico, entre eles Chagall, Miró,
Henri Michaux e René Char. Recebeu o prêmio italiano
Etna-Taormina, em 1972. Foi professor e crítico de
arte.
Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000
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