Canção da Vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando em torno a ti:
Como eu sou bela amor!
Entra em mim, como em uma tela de Renoir
enquanto é primavera, enquanto o mundo não poluiro azul
do ar!
Não vás ficar não vás ficar aí...
como um salso chorando na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

A vida...
é um dever que trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê já são seis horas há tempos...
Quando se vê já é Sexta-feira...
Quando se vê passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
Se me dessem um dia outra oportunidade,
Eu nem olhava o relógio,
Seguia sempre em frente
E iria jogando pelo caminho
A casca dourada e inútil das horas...

Bilhete
Se
tu me amas, ama-me baixinho
Não
o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos Deixa em paz a mim!
Se
me queres, enfim, tem de ser bem devagarinho,
Amada, que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

Da Inquieta Esperança
Bem
sabes Tu, Senhor,
que
o bem melhor é aquele
Que
não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na
inquietação feliz do
Purgatório.
Espelho
Por
acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu?
(...) Parece meu velho pai - que já morreu!
(...) Nosso olhar duro interroga:
"O
que fizeste de mim?"
Eu
pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu
sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E
os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas
sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi
sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste...

A Verdadeira Arte de Viajar
A
gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de
nós
todos os caminhos do mundo.
Não
importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe,
de
alma aberta e o coração cantando!

Das Utopias
Se
as coisas são inatingíveis... ora!
Não
é motivo para não quere-las...
Que
tristes os caminhos, se não fora
a
magica presença das
estrelas!

Se eu Fosse um Padre
Se
eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não
falaria em Deus nem no Pecado
-
muito menos no Anjo Rebelado e os encantos das suas seduções,
não
citaria santos e profetas: nada das suas celestiais
promessas ou das suas terríveis maldições...
Se
eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram e quem me
dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma ...
a
um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um
belo poema sempre leva a Deus!

Lágrima
Denso, mas transparente Como uma lágrima... Quem
me dera Um poema assim! Mas... Este rascar da pena!
Esse Ringir das articulações... Não ouves?! Ai do poema
Que assim escreve a mão infiel Enquanto - em silêncio a
pobre alma Pacientemente
espera.
A Rua dos
Cataventos
Escrevo diante da janela aberta. Minha caneta é cor
das venezianas: Verde!... E que leves, lindas
filigranas Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas Mistura os tons...
acerta... desacerta... Sempre em busca de nova
descoberta, Vai colorindo as horas
quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem! Do que eu ia
escrever até me esqueço... Pra que pensar? Também sou da
paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando... E me
transmuto... iriso-me... estremeço... Nos leves dedos que me
vão pintando!
Canção de
Barco e de Ouvido
(Para Augusto
Meyer)
Não quero a negra desnuda. Não quero o baú do
morto. Eu quero o mapa das nuvens E um barco bem
vagaroso.
Ai esquinas esquecidas... Ai lampiões de fins de
linha... Quem me abana das antigas Janelas de
guilhotina?
Que eu vou passando e passando, Como em busca de
outros ares... Sempre de barco passando, Cantando os meus
quintanares...
No mesmo instante olvidando Tudo o de que te
lembrares.

Mário
Quintana
(1906-1994)
Mário Quintana
nasceu em Alegrete e faleceu em Porto Alegre, Rio Grande do
Sul.
Modernista que não
se deixou influenciar por nenhuma tendência literária,
respeitando sempre sua própria poesia, criou um universo
particular, caracterizado pela visão irônica e contemplativa
do mundo.
Seus temas são
universais: a morte, a infância perdida, o tempo,
seu inconfundível lirismo é
de um poeta em estado puro, numa fusão de arte e vida. Entre
suas obras destacam-se A rua dos cataventos (1940),
Sapato florido (1948), O aprendiz de feiticeiro
(1950), Pé de pilão (1968, infantil), Esconderijos
do tempo (1980) e Preparativos de
viagem(1987).
Fonte: Enciclopédia
Encarta - 2000 Microsoft
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