Endymion (1893) - John William Godward  


 
 

 

 

Soneto de Natal

 

Um homem, — era aquela noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno, —

Ao relembrar os dias de pequeno,

E a viva dança, e a lépida cantiga,

 

Quis transportar ao verso doce e ameno

As sensações da sua idade antiga,

Naquela mesma velha noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno.

 

Escolheu o soneto . . . A folha branca

Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,

A pena não acode ao gesto seu.

 

E, em vão lutando contra o metro adverso,

Só lhe saiu este pequeno verso:

"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

 

 

 

 

Círculo Vicioso

 

 

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:

"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela

Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

 

"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,

Que, da grega coluna à gótica janela,

Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"

Mas a lua, fitando o sol com azedume:

 

"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela

Claridade imortal, que toda a luz resume"!

Mas o sol, inclinando a rútila capela:

 

Pesa-me esta brilhante auréola de nume...

Enfara-me esta luz e desmedida umbela...

Por que não nasci eu um simples vagalume?"...

 

 

 

 

Carolina

 

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

 

Trago-te flores - restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

 

 

 

Relíquia Íntima

 

Ilustríssimo, caro e velho amigo,

Saberás que, por um motivo urgente,

Na quinta-feira, nove do corrente,

Preciso muito de falar contigo.

 

E aproveitando o portador te digo,

Que nessa ocasião terás presente,

A esperada gravura de patente

Em que o Dante regressa do Inimigo.

 

Manda-me pois dizer pelo bombeiro

Se às três e meia te acharás postado

Junto à porta do Garnier livreiro:

 

Senão, escolhe outro lugar azado;

Mas dá logo a resposta ao mensageiro,

E continua a crer no teu Machado.

 

 

 

 

Horas Vivas

 

Noite: abrem-se as flores . . .

Que esplendores!

Cíntia sonha seus amores

Pelo céu.

Tênues as neblinas

Às campinas

Descem das colinas,

Como um véu.

 

Mãos em mãos travadas,

Animadas,

Vão aquelas fadas

Pelo ar;

Soltos os cabelos,

Em novelos,

Puros, louros, belos,

A voar.

 

— "Homem, nos teus dias

Que agonias,

Sonhos, utopias,

Ambições;

Vivas e fagueiras,

As primeiras,

Como as derradeiras

Ilusões!

 

— "Quantas, quantas vidas

Vão perdidas,

Pombas mal feridas

Pelo mal!

Anos após anos,

Tão insanos,

Vêm os desenganos

Afinal.

 

— "Dorme: se os pesares

Repousares,

Vês? — por estes ares

Vamos rir;

Mortas, não; festivas,

E lascivas,

Somos — horas vivas

De dormir. —"

 

 

 

Flor da Mocidade

 

 

Eu conheço a mais bela flor;

És tu, rosa da mocidade,

Nascida aberta para o amor.

Eu conheço a mais bela flor.

Tem do céu a serena cor,

E o perfume da virgindade.

Eu conheço a mais bela flor,

És tu, rosa da mocidade.

 

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mão;

Vive às vezes na solidão.

Poupa a raiva do furacão

Suas folhas de azul celeste.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

 

 

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta já nada val.

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra é mais jovial

Todo o bem nos parece eterno.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno.

 

 

Livros e Flores

 

Teus olhos são meus livros.

Que livro há aí melhor,

Em que melhor se leia

A página do amor?

 

Flores me são teus lábios.

Onde há mais bela flor,

Em que melhor se beba

O bálsamo do amor?

Livros e Flores

 

Teus olhos são meus livros.

Que livro há aí melhor,

Em que melhor se leia

A página do amor?

 

Flores me são teus lábios.

Onde há mais bela flor,

Em que melhor se beba

O bálsamo do amor?

 

 

Uma Criatura

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas,

Com a sofreguidão da fome insaciável.

 

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta do colibri, como gosta do verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

 

Pois esta criatura está em toda a obra;

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as forças dobra.

 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

 

 

Machado de Assis

(1839-1908)

 

Machado de Assis, Joaquim Maria (1839-1908), romancista, contista, dramaturgo e poeta que alcançou o ponto mais alto e equilibrado da prosa realista brasileira. Nasceu no morro do Livramento, Rio de Janeiro, filho de um pintor mulato e uma lavadeira açoriana. Órfão de ambos na primeira infância, foi criado por uma mulher chamada Maria Ignês. Frágil, gago, epilético, Machado de Assis tornou-se um adulto reservado e tímido. Alfabetizou-se em uma escola pública e recebeu aulas de francês e latim, mas foi um autodidata em sua vasta cultura literária. Aos 16 anos trabalhava como tipógrafo-aprendiz na Imprensa Nacional. Antes dos 20 anos, já era jornalista no Correio Mercantil. Casou-se, aos 30 anos, com a portuguesa Carolina Xavier de Novais, sua companheira de vida e inspiradora da bela personagem dona Carmo, do livro Memorial de Aires.

Escreveu, na década de 1860, todas as suas comédias, irônicos episódios do cotidiano em que já aparece sua decidida e definitiva recusa às convenções sociais.

Nos anos 1870 e 1880, os contos e romances de sua fase romântica — Contos fluminenses, Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia — esboçam, em finos retratos femininos, a força do papel social como segunda e imposta natureza e as pressões que impelem os personagens a mudar de status ou classe social.

Entre 1878 e 1880, antes do salto qualitativo que representa o romance A Mão e a Luva (1881), criou contos e poemas que se tornaram obrigatórios em todas as antologias da língua portuguesa. Este período é marcado pelo humor muito pessoal, o distanciamento crítico, a sutileza de análise de atitudes e comportamentos humanos, tudo mesclado a uma fina ironia em relação aos valores sociais. Exemplos disso são os contos Filosofia de um par de botas, O alienista e os poemas A mosca azul e Círculo vicioso.

Seguiram-se, entre outros, Histórias sem data (1884) e os romances Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904), em que a crescente riqueza de temas e possibilidades narrativas vai desenhando, em fina ironia, a sociedade e as forças do inconsciente que movem os interesses de posição, prestígio, dinheiro e poder pelos quais esfalfam-se os homens, gerando um mundo em que o pobre, o louco e o diferente são sempre expulsos ou abandonados.

A essa altura, já considerado um dos maiores escritores brasileiros e com grande prestígio no meio intelectual, Machado de Assis fundou, com outros escritores, a Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente. Promoveu poetas e escritores novos — apesar de continuar marcante seu temperamento "casmurro" e, ao final de sua vida, demonstrar também um certo desligamento das questões políticas. Em seu último romance, Memorial de Aires (1908), Machado de Assis revelou sua desencantada, filosófica, mas quase terna compreensão e aceitação da fragilidade e da futilidade humanas.

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft

 

 

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