Soneto de
Natal
Um homem, — era aquela noite
amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno,
—
Ao relembrar os dias de
pequeno,
E a viva dança, e a lépida
cantiga,
Quis transportar ao verso doce e
ameno
As sensações da sua idade
antiga,
Naquela mesma velha noite
amiga,
Noite cristã, berço do
Nazareno.
Escolheu o soneto . . . A folha
branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa
e manca,
A pena não acode ao gesto
seu.
E, em vão lutando contra o metro
adverso,
Só lhe saiu este pequeno
verso:
"Mudaria o Natal ou mudei
eu?"
Círculo
Vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto
vagalume:
"Quem me dera que eu fosse aquela
loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma
eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com
ciúme:
"Pudesse eu copiar-te o
transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica
janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte
amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com
azedume:
"Mísera! Tivesse eu aquela enorme,
aquela
Claridade imortal, que toda a luz
resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila
capela:
Pesa-me esta brilhante auréola de
nume...
Enfara-me esta luz e desmedida
umbela...
Por que não nasci eu um simples
vagalume?"...
Carolina
Querida, ao pé do leito
derradeiro
Em que descansas dessa longa
vida,
Aqui venho e virei, pobre
querida,
Trazer-te o coração do
companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto
verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana
lida,
Fez a nossa existência
apetecida
E num recanto pôs o mundo
inteiro.
Trago-te flores - restos
arrancados
Da terra que nos viu passar
unidos
E ora mortos nos deixa e
separados.
Que eu, se tenho nos olhos
malferidos
Pensamentos de vida
formulados,
São pensamentos idos e
vividos.
Relíquia
Íntima
Ilustríssimo, caro e velho
amigo,
Saberás que, por um motivo
urgente,
Na quinta-feira, nove do
corrente,
Preciso muito de falar
contigo.
E aproveitando o portador te
digo,
Que nessa ocasião terás
presente,
A esperada gravura de
patente
Em que o Dante regressa do
Inimigo.
Manda-me pois dizer pelo
bombeiro
Se às três e meia te acharás
postado
Junto à porta do Garnier
livreiro:
Senão, escolhe outro lugar
azado;
Mas dá logo a resposta ao
mensageiro,
E continua a crer no teu
Machado.
Horas
Vivas
Noite: abrem-se as flores . .
.
Que esplendores!
Cíntia sonha seus
amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.
Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.
— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!
— "Quantas, quantas
vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.
— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir.
—"
Flor da
Mocidade
Eu conheço a mais bela
flor;
És tu, rosa da
mocidade,
Nascida aberta para o
amor.
Eu conheço a mais bela
flor.
Tem do céu a serena
cor,
E o perfume da
virgindade.
Eu conheço a mais bela
flor,
És tu, rosa da
mocidade.
Vive às vezes na
solidão,
Como filha da brisa
agreste.
Teme acaso indiscreta
mão;
Vive às vezes na
solidão.
Poupa a raiva do
furacão
Suas folhas de azul
celeste.
Vive às vezes na
solidão,
Como filha da brisa
agreste.
Colhe-se antes que venha o
mal,
Colhe-se antes que chegue o
inverno;
Que a flor morta já nada
val.
Colhe-se antes que venha o
mal.
Quando a terra é mais
jovial
Todo o bem nos parece
eterno.
Colhe-se antes que venha o
mal,
Colhe-se antes que chegue o
inverno.
Livros e
Flores
Teus olhos são meus
livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus
lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
Livros e Flores
Teus olhos são meus
livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus
lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do
amor?
Uma Criatura
Sei de uma criatura antiga e
formidável,
Que a si mesma devora os membros e
as entranhas,
Com a sofreguidão da fome
insaciável.
Habita juntamente os vales e as
montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira
de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões
estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro
despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e
mavioso,
Parece uma expansão de amor e de
egoísmo.
Friamente contempla o desespero e
o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do
verme,
E cinge ao coração o belo e o
monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola,
inerme;
E caminha na terra imperturbável,
como
Pelo vasto areal um vasto
paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu
primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se
desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado
pomo.
Pois esta criatura está em toda a
obra;
Cresta o seio da flor e
corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças
dobra.
Ama de igual amor o poluto e o
impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua
lida,
E sorrindo obedece ao divino
estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi
que é a Vida.
Machado
de Assis
(1839-1908)
Machado de Assis, Joaquim Maria
(1839-1908), romancista, contista, dramaturgo e poeta que
alcançou o ponto mais alto e equilibrado da prosa realista
brasileira. Nasceu no morro do Livramento, Rio de Janeiro,
filho de um pintor mulato e uma lavadeira açoriana. Órfão de
ambos na primeira infância, foi criado por uma mulher chamada
Maria Ignês. Frágil, gago, epilético, Machado de Assis
tornou-se um adulto reservado e tímido. Alfabetizou-se em uma
escola pública e recebeu aulas de francês e latim, mas foi um
autodidata em sua vasta cultura literária. Aos 16 anos
trabalhava como tipógrafo-aprendiz na Imprensa
Nacional. Antes dos 20 anos, já era jornalista no
Correio Mercantil. Casou-se, aos 30 anos, com a
portuguesa Carolina Xavier de Novais, sua companheira de vida
e inspiradora da bela personagem dona Carmo, do livro
Memorial de Aires.
Escreveu, na década de 1860, todas as suas comédias,
irônicos episódios do cotidiano em que já aparece sua decidida
e definitiva recusa às convenções sociais.
Nos
anos 1870 e 1880, os contos e romances de sua fase romântica —
Contos fluminenses, Ressurreição, A mão e a luva, Helena e
Iaiá Garcia — esboçam, em finos retratos femininos, a
força do papel social como segunda e imposta natureza e as
pressões que impelem os personagens a mudar de status
ou classe social.
Entre 1878 e 1880, antes do salto qualitativo
que representa o romance A Mão e a Luva (1881), criou
contos e poemas que se tornaram obrigatórios em todas as
antologias da língua portuguesa. Este período é marcado pelo
humor muito pessoal, o distanciamento crítico, a sutileza de
análise de atitudes e comportamentos humanos, tudo mesclado a
uma fina ironia em relação aos valores sociais. Exemplos disso
são os contos Filosofia de um par de botas, O alienista
e os poemas A mosca azul e Círculo
vicioso.
Seguiram-se, entre outros, Histórias sem data
(1884) e os romances Quincas Borba (1892), Dom
Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904), em que a
crescente riqueza de temas e possibilidades narrativas vai
desenhando, em fina ironia, a sociedade e as forças do
inconsciente que movem os interesses de posição, prestígio,
dinheiro e poder pelos quais esfalfam-se os homens, gerando um
mundo em que o pobre, o louco e o diferente são sempre
expulsos ou abandonados.
A essa
altura, já considerado um dos maiores escritores brasileiros e
com grande prestígio no meio intelectual, Machado de Assis
fundou, com outros escritores, a Academia Brasileira de
Letras, da qual foi o primeiro presidente. Promoveu poetas e
escritores novos — apesar de continuar marcante seu
temperamento "casmurro" e, ao final de sua vida, demonstrar
também um certo desligamento das questões políticas. Em seu
último romance, Memorial de Aires (1908), Machado de
Assis revelou sua desencantada, filosófica, mas quase terna
compreensão e aceitação da fragilidade e da futilidade
humanas.
Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000
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