Cartão de Natal
Pois
que reinaugurando essa criança pensam os homens reinaugurar
a sua vida e começar novo caderno, fresco como o pão do
dia; pois que nestes dias a aventura parece em ponto de vôo,
e parece que vão enfim poder explodir suas
sementes:
que
desta vez não perca esse caderno sua atração núbil para o
dente; que o entusiasmo conserve vivas suas molas, e
possa enfim o ferro comer a ferrugem o sim comer o
não.

Difícil ser
funcionário
Difícil ser
funcionário Nesta segunda-feira. Eu te telefono,
Carlos Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia Que me
deixa assim, Cinemas, avenidas, E outros
não-fazeres.
É a dor das coisas, O luto desta
mesa; É o regimento proibindo Assovios, versos,
flores.
Eu nunca suspeitara Tanta roupa preta; Tão
pouco essas palavras — Funcionárias, sem amor.
Carlos,
há uma máquina Que nunca escreve cartas; Há uma garrafa de
tinta Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos,
Carlos, As caixas de papéis: Túmulos para todos Os
tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto De gravata
de cor, E na cabeça uma moça Em forma de
lembrança
Não encontro a palavra Que diga a esses
móveis. Se os pudesse encarar... Fazer seu nojo
meu...
Carlos, dessa náusea Como colher a flor? Eu
te telefono, Carlos, Pedindo
conselho.

A
Carlos Drummond de Andrade
Não há
guarda-chuva contra o poema subindo de regiões onde tudo é
surpresa como uma flor mesmo num canteiro.
Não há
guarda-chuva contra o amor que mastiga e cospe como qualquer
boca, que tritura como um desastre.
Não há
guarda-chuva contra o tédio: o tédio das quatro paredes, das
quatro estações, dos quatro pontos cardeais.
Não há
guarda-chuva contra o mundo cada dia devorado nos
jornais sob as espécies de papel e tinta.
Não há
guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa,
correnteza carregando os dias, os
cabelos.

Tecendo a Manhã
1
Um galo
sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros
galos. De
um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e
de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os
fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde
uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os
galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo
para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que,
tecido, se eleva por si: luz balão.

O Relógio
1
Ao redor
da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das
quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho.
Se
são jaulas não é certo; mais perto estão das gaiolas ao
menos, pelo tamanho e quadradiço de forma.
Uma
vezes, tais gaiolas vão penduradas nos muros; outras
vezes, mais privadas, vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola será de pássaro ou
pássara: é alada a palpitação, a saltação que ela
guarda;
e de pássaro cantor, não pássaro de
plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal
continuidade
que continua cantando se deixa de
ouví-lo a gente: como a gente às vezes canta para
sentir-se existente.
2
O que eles cantam, se pássaros, é diferente de todos:
cantam numa linha baixa, com voz de pássaro rouco;
desconhecem as variantes e o estilo numeroso dos
pássaros que sabemos, estejam presos ou soltos;
têm
sempre o mesmo compasso horizontal e monótono, e nunca,
em nenhum momento, variam de repertório:
dir-se-ia
que não importa a nenhum ser escutado. Assim, que não
são artistas nem artesãos, mas operários
para quem
tudo o que cantam é simplesmente trabalho, trabalho
rotina, em série, impessoal, não assinado,
de
operário que executa seu martelo regular proibido (ou
sem querer) do mínimo variar.
3
A mão daquele martelo nunca
muda de compasso. Mas tão igual sem fadiga, mal deve ser
de operário;
ela é por demais precisa para não ser
mão de máquina, a máquina independente de operação
operária.
De máquina, mas movida por uma força
qualquer que a move passando nela, regular, sem
decrescer:
quem sabe se algum monjolo ou antiga roda
de água que vai rodando, passiva, graçar a um fluido que
a passa;
que fluido é ninguém vê: da água não mostra
os senões: além de igual, é contínuo, sem marés, sem
estações.
E porque tampouco cabe, por isso, pensar
que é o vento, há de ser um outro fluido que a move:
quem sabe, o tempo.
4
Quando por
algum motivo a roda de água se rompe, outra máquina se
escuta: agora, de dentro do homem;
outra máquina de
dentro, imediata, a reveza, soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.
Então se sente que o som
da máquina, ora interior, nada possui de passivo, de
roda de água: é motor;
se descobre nele o afogo de
quem, ao fazer, se esforça, e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,
incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota, o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.

Num momento à Aspirina
Claramente: o mais
prático dos sóis, o sol de um comprimido de aspirina: de
emprego fácil, portátil e barato, compacto de sol na lápide
sucinta. Principalmente porque, sol artificial, que nada
limita a funcionar de dia, que a noite não expulsa, cada
noite, sol imune às leis de meteorologia, a toda a hora em
que se necessita dele levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma, quará-la, em linhos
de um meio-dia. ...

João Cabral de Melo
Neto
(1920-1999)
João
Cabral de Melo Neto, poeta
brasileiro nascido em Recife.Desempenhou funções diplomáticas em Assunção,
Barcelona e Dacar e é membro da Academia Brasileira de Letras.
Sua poesia é a expressão da nova objetividade, que direciona
os interesses pelas coisas do Brasil, como meio de apreender e
transformar a realidade. Suas imagens se despojam do
sentimental e do pitoresco, para dar uma idéia clara dos
objetos que circundam o ser humano moderno, atual. No
princípio, seus trabalhos sofriam a influência do surrealismo,
que depois abandonou em favor de um novo critério estético e
outro rigor semântico. A necessidade de afirmar um novo perfil
do discurso lírico deixa entrever certo
maneirismo.
O cão sem
plumas inaugura o tratamento da natureza e dos índios da
região. Esse "cão sem plumas" é o Capibaribe, o rio que
arrasta os detritos das moradias pobres do
Recife.
A influência
da poesia ibérica medieval aparece nos versos breves da forma
como descreve os casebres nordestinos, como em Morte e Vida
Severina., auto de natal pernambucano que é um de seus
trabalhos mais conhecidos. Severino, um homem da zona árida do
nordeste, vai em busca da costa e, em cada parada do caminho,
enfrenta a morte, até chegar à última pousada, onde toma
conhecimento do nascimento de um menino, prova de que se pode
resistir à negação da existência.
Em obras posteriores, leva ao extremo a
intenção de despojar o poema de elementos supérfluos e
deslizes sentimentais. Serve-se do concreto para alcançar à
abstração. Entre suas obras destacam-se: Pedra do sono
(1942), Quaderna (1960), Poesias Completas
(1968), A escola das facas (1980), Agrestes
(1985), Auto do Frade (1986) e Crime na rua
Relator (1987).
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
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