A favourite custom (1909) - Alma Tadema  


 
 

pg. 1

 

Canção do Exílio

 

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

 

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

 

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

 

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar — sozinho, à noite —

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

 

 

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

 

 

 

Se se morre de amor!

 

Se se morre de amor! — Não, não se morre,

Quando é fascinação que nos surpreende

De ruidoso sarau entre os festejos;

Quando luzes, calor, orquestra e flores

Assomos de prazer nos raiam n'alma,

Que embelezada e solta em tal ambiente

No que ouve, e no que vê prazer alcança!

 

Simpáticas feições, cintura breve,

Graciosa postura, porte airoso,

Uma fita, uma flor entre os cabelos,

Um quê mal definido, acaso podem

Num engano d'amor arrebatar-nos.

Mas isso amor não é; isso é delírio,

Devaneio, ilusão, que se esvaece

Ao som final da orquestra, ao derradeiro

 

Clarão, que as luzes no morrer despedem:

Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,

D'amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente

Alma, sentidos, coração — abertos

Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,

D'altas virtudes, té capaz de crimes!

Compr'ender o infinito, a imensidade,

E a natureza e Deus; gostar dos campos,

D'aves, flores, murmúrios solitários;

Buscar tristeza, a soledade, o ermo,

E ter o coração em riso e festa;

E à branda festa, ao riso da nossa alma

Fontes de pranto intercalar sem custo;

Conhecer o prazer e a desventura

No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto

O ditoso, o misérrimo dos entes;

Isso é amor, e desse amor se morre!

 

Amar, e não saber, não ter coragem

Para dizer que amor que em nós sentimos;

Temer qu'olhos profanos nos devassem

O templo, onde a melhor porção da vida

Se concentra; onde avaros recatamos

Essa fonte de amor, esses tesouros

Inesgotáveis, d'ilusões floridas;

Sentir, sem que se veja, a quem se adora,

Compr'ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,

Segui-la, sem poder fitar seus olhos,

Amá-la, sem ousar dizer que amamos,

E, temendo roçar os seus vestidos,

Arder por afogá-la em mil abraços:

Isso é amor, e desse amor se morre!

 

Se tal paixão porém enfim transborda,

Se tem na terra o galardão devido

Em recíproco afeto; e unidas, uma,

Dois seres, duas vidas se procuram,

Entendem-se, confundem-se e penetram

Juntas — em puro céu d'êxtases puros:

Se logo a mão do fado as torna estranhas,

Se os duplica e separa, quando unidos

A mesma vida circulava em ambos;

 

Que será do que fica, e do que longe

Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?

Pode o raio num píncaro caindo,

Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;

Pode rachar o tronco levantado

E dois cimos depois verem-se erguidos,

Sinais mostrando da aliança antiga;

Dois corações porém, que juntos batem,

Que juntos vivem, — se os separam, morrem;

Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,

Se aparência de vida, em mal, conservam,

Ãnsias cruas resumem do proscrito,

Que busca achar no berço a sepultura!

 

Esse, que sobrevive à própria ruína,

Ao seu viver do coração, — às gratas

Ilusões, quando em leito solitário,

Entre as sombras da noite, em larga insônia,

Devaneando, a futurar venturas,

Mostra-se e brinca a apetecida imagem;

Esse, que à dor tamanha não sucumbe,

Inveja a quem na sepultura encontra

Dos males seus o desejado termo!

 

 

Seus Olhos

 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

Estrelas incertas, que as águas dormentes

Do mar vão ferir;

 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Têm meiga expressão,

Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta

De noite cantando, — mais doce que a frauta

Quebrando a solidão,

 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

São meigos infantes, gentis, engraçados

Brincando a sorrir.

 

São meigos infantes, brincando, saltando

Em jogo infantil,

Inquietos, travessos; — causando tormento,

Com beijos nos pagam a dor de um momento,

Com modo gentil.

 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,

Às vezes vulcão!

 

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,

Tão frouxo brilhar,

Que a mim me parece que o ar lhes falece,

E os olhos tão meigos, que o pranto umedece

Me fazem chorar.

 

Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,

Desperta a chorar;

E mudo e sisudo, cismando mil coisas,

Não pensa — a pensar.

 

Nas almas tão puras da virgem, do infante,

Às vezes do céu

Cai doce harmonia duma Harpa celeste,

Um vago desejo; e a mente se veste

De pranto co'um véu.

Quer sejam saudades, quer sejam desejos

Da pátria melhor;

Eu amo seus olhos que choram em causa

Um pranto sem dor.

 

 

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,

De vivo fulgor;

Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,

Que falam de amores com tanta poesia,

Com tanto pudor.

 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Eu amo esses olhos que falam de amores

Com tanta paixão.

 

 

Recordação


 

Quando em meu peito as aflições rebentam

Eivadas de sofrer acerbo e duro;

Quando a desgraça o coração me arrocha

Em círculos de ferro, com tal força,

Que dele o sangue em borbotões golfeja;

Quando minha alma de sofrer cansada,

Bem que afeita a sofrer, sequer não pode

Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos

Rebeldes, uma lágrima não vertem

Do mar d'angústias que meu peito oprime:

 

Volvo aos instantes de ventura, e penso

Que a sós contigo, em prática serena,

Melhor futuro me augurava, as doces

Palavras tuas, sôfregos, atentos

Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos

Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida

Longa, bem longa, não bastara ainda

por que de os ver me saciasse!... O pranto

Então dos olhos meus corre espontâneo,

Que não mais te verei. — Em tal pensando

De martírios calar sinto em meu peito

Tão grande plenitude, que a minha alma

Sente amargo prazer de quanto sofre.

 

 

Amor! Delirío - Engano

 


Amor! delírio — engano... Sobre a terra

Amor também fruí; a vida inteira

Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.

Amei! — dedicação, ternura, extremos

Cismou meu coração, cismou minha alma,

— Minha alma que na taça da ventura

Vida breve d'amor sorveu gostosa.

Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata

Oásis, paraíso, éden ou templo

Habitamos uma hora; e logo o tempo

Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,

Doce encanto que o amor nos fabricara.

 

E eu sempre a via!... quer nas nuvens d'oiro,

Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,

Ou quer na branca nuvem que velava

O círculo da lua, — quer no manto

D'alvacenta neblina que baixava

Sobre as folhas do bosque, muda e grave,

Da tarde no cair; nos céus, na terra,

A ela, a ela só, viam meus olhos.

 

Seu nome, sua voz — ouvia eu sempre;

Ouvia-os no gemer da parda rola,

No trépido correr da veia argêntea,

No respirar da brisa, no sussurro

Do arvoredo frondoso, na harmonia

Dos astros inefável; — o seu nome!

Nos fugitivos sons de alguma frauta,

Que da noite o silêncio realçavam,

Os ares e a amplidão divinizando,

Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo

Arfava de prazer meu peito ardente.

 

Ah! quantas vezes, quantas! junto dela

Não senti sua mão tremer na minha;

Não lhe escutei um lânguido suspiro,

Que vinha lá do peito à flor dos lábios

Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos

A mágica fragrância respirando,

Escutando-lhe a voz doce e pausada,

Mil venturas colhi dos lábios dela,

Que instantes de prazer me futuravam.

Cada sorriso seu era uma esp'rança,

E cada esp'rança enlouquecer de amores.

 

E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens

Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;

Que afetos melindrosos, que em meu peito

Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!

Oh! — não, — morra comigo o meu segredo;

Rebelde o coração murmure embora.

 

Que de vezes, pensando a sós comigo,

Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,

Da minha vida que farei, se acaso

Faltar-me o teu amor um só instante;

— Eu que só vivo por te amar, que apenas

O que sinto por ti a custo exprimo?

No mundo que farei, como estrangeiro

Pelas vagas cruéis à praia inóspita

Exânime arrojado? — Eu, que isto disse,

Existo e penso — e não morri, — não morro

Do que outrora senti, do que ora sinto,

De pensar nela, de a rever em sonhos,

Do que fui, do que sou e ser podia!

 

Existo; e ela de mim jaz esquecida!

Esquecida talvez de amor tamanho,

Derramando talvez noutros ouvidos

Frases doces de amor, que dos seus lábios

Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes

Em êxtase divino aos céus me alçaram,

— Que dando à terra ingrata o que era terra

Minha alma além das nuvens transportaram.

Existo! como outrora, no meu peito

Férvido o coração pular sentindo,

Todo o fogo da vida derramando

Em queixas mulheris, em moles versos.

E ela!... ela talvez nos braços doutrem

Com sua vida alimenta uma outra vida,

 

Com o seu coração o de outro amante,

Que mais feliz do que eu, infemo! a goza.

Ela, que eu respeitei, que eu venerava

Como a relíquia santa! — a quem meus olhos,

Receando ofendê-la, tantas vezes

De castos e de humildes se abaixaram!

Ela, perante quem sentia eu presa

A voz nos lábios e a paixão no peito!

Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,

A força d'homem, o sentir, vontade

Própria e minha dediquei, — sujeita

À voz de alguém que não sou eu, — desperta,

Talvez no instante em que de mim se lembra,

Por um ósculo frio, por carícias

Devidas dum esposo!...

Oh! não poder-te,

Abutre roedor, cruel ciúme,

Tua funda raiz e a imagem dela

No peito em sangue espedaçar raivoso!

Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,

Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe

Um quebrado suspiro do imo peito,

Que d'eras já passadas se recorda.

Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto

Enrubescer-se ao deparar contigo!

Presa serás também d'atros cuidados,

Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:

Nem menor que o meu mal quero a vingança.

 

 

Te Deum

 

Senhor Deus Sabaó, três vezes santo,

Imenso é o teu poder, tua força imensa,

Teus prodígios sem conta; — e os céus e a terra

Teu ser e nome e glória preconizam.

 

E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,

E o coro dos profetas, e dos mártires

A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,

Senhor Deus Sabaó, três vezes santo.

 

Na inocência do infante és tu quem falas;

A beleza, o pudor — és tu que as gravas

Nas faces da mulher, — és tu que ao velho

Prudência dás, — e o que verdade e força

Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.

 

És tu quem dás rumor à quieta noite,

És tu quem dás frescor à mansa brisa,

Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,

Quem na voz do trovão longe rouquejas.

És tu que do oceano à fúria insana

Pões limites e cobro, — és tu que a terra

No seu vôo equilibras, — quem dos astros

Governas a harmonia, como notas

 

Acordes, simultâneas, palpitando

Nas cordas d'Harpa do teu Rei Profeta,

Quando ele em teu furor hinos soltava,

Qu'iam, cheios de amor, beijar teu sólio.

Santo! Santo! Santo! — teus prodígios

São grandes, como os astros, — são imensos,

Como areia delgada em quadra estiva.

 

E o arcanjo forte e o serafim sem mancha,

E o coro dos profetas, e dos mártires

A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,

Senhor Deus Sabaó, três vezes grande.

 

 

O Amor

 

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto

Desta existência mísera, onde existes?

Fino sentir ou mágico transporte,

(O quer que seja que nos leva a extremos,

Aos quais não basta a natureza humana;)

Simpática atração d'almas sinceras

Que unidas pelo amor, no amor se apuram,

Por quem suspiro, serás nome apenas?

 

A inútil chama ressecou meus lábios,

Mirrou-me o coração da vida em meio,

E à terra fez baixar a mente errada

Que entre nuvens, amor, por ti bradava!

Não te pude encontrar! — em vão meus anos

No louco intento esperdicei; gelados,

Uns após outros a cair precípites

Na urna do passado os vi; eu triste,

Amor, por ti clamava; — e o meu deserto

Aos meus acentos reboava embalde.

 

Em vão meu coração por ti se fina,

Em vão minha alma te compreende e busca,

Em vão meus lábios sôfregos cobiçam

Libar a taça que aos mortais of’reces!

Dizem-na funda, inesgotável, meiga;

Enquanto a vejo rasa, amarga e dura!

Dizem-na bálsamo, eu veneno a sorvo:

Prazer, doçura, — eu dor e fel encontro!

 

Dobrei-me às duras leis que me impuseste,

Curvei ao jugo teu meu colo humilde,

Feri-me aos teus ardentes passadores,

Prendi-me aos teus grilhões, rojei por terra...

E o lucro?... foram lágrimas perdidas,

Foi roxa cicatriz qu'inda conservo,

Desbotada a ilusão e a vida exausta!

 

Celeste emanação, gratos eflúvios

Das roseiras do céu; bater macio

Das asas auribrancas dalgum anjo,

Que roça em noite amiga a nossa esfera,

Centelha e luz do sol que nunca morre;

És tudo, e mais qu'isto: — és luz e vida,

Perfume, e vôo d'anjo mal sentido,

Peregrinas essências trescalando!...

Também passas veloz, — breve te apagas,

Como duma ave a sombra fugitiva,

Desgarrada voando à flor de um lago!

 

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Gonçalves Dias

(1823-1864)

Antônio Gonçalves Dias, poeta que consolidou o movimento romântico brasileiro. Nasceu em Caxias, Maranhão, e faleceu em um naufrágio no litoral maranhense. Estudou Direito na Universidade de Coimbra. Foi jornalista, professor do Colégio Pedro II e funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Realizou, por ordem do governo brasileiro, missões de coleta de documentos em arquivos europeus.

Um precursor do movimento ecológico pela veemência com que defendeu a preservação da natureza, Gonçalves Dias deixou uma obra em que se incluem dramas, peças teatrais, poemas e até um dicionário da língua tupi. Nela pode-se notar uma variedade tão grande de ritmos — cada texto encontrava seu próprio andamento — que alguns críticos o consideram o pai de um estudado desequilíbrio formal que as gerações futuras cultuariam. Tão grande era o domínio de Gonçalves Dias sobre a língua portuguesa que seu poema mais conhecido, a Canção do exílio, ("minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá/"), não tem, nos 24 versos que a compõem, um só adjetivo. Também é famoso seu nacionalismo e sua tendência a explorar temas indígenas.

Gonçalves Dias escreveu, também, memórias de interesse histórico, publicadas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e publicou, entre outros, os livros Primeiros Cantos, Segundos Cantos e Últimos Cantos (1847-1861), Os timbiras (1857). De sua autoria ficaram famosos, principalmente, as poesias Canção do tamoio e I Juca Pirama. Principal expressão do indianismo dentro do movimento romântico, sua poesia é panteísta, lírica e bucólica, além de marcada pela nostalgia e pela tristeza.

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft


 

 

 

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