Amar
Eu
quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e a toda gente...
Amar! Amar!
E
não amar ninguém! recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há
uma primavera em cada vida:
É
preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.
E
se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que
seja a minha noite uma alvorada,
Que
eu saiba me perder... pra te encontrar...

Amo...
as pedras, os astros e o luar que beija as ervas do
atalho escuro,
Amo
as águas de anil e o doce olhar dos animais, divinamente puro.
Amo
a hera que entende a voz do muro e dos sapos, o brando tilintar
De
cristais que se que se afagam devagar,
E
da minha charneca o rosto duro.
Amo
todos os sonhos que se calam
De
corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa
que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do
nosso grande e mísero Destino!...
No
desequilíbrio dos mares, as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram é que certamente tu vinhas.
Eu
te esperei todos os séculos sem desespero e sem desgosto,
e
morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto
Quando as ondas te carregaram meu olhos, entre águas e
areias,
cegaram como os das estátuas, a tudo quanto existe
alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar e endureceram junto ao
vento,
e
perderam a cor que tinham e a lembrança do movimento.
E o
sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim:
e
só talvez ele ainda viva dentro destas águas sem fim.

Súplica
Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que
cega ando eu há muito por te amar.
O
meu colo é arninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua
linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz
alcatifa, oh faz, de meus cabelos!
Os
meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...
Vem
para mim, amor... Ai não desprezes
A
minha adoração de escrava louca!
Só
te peço que deixes exalar
Meu
último suspiro na tua boca!...

Sonhos
Ter
um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que
se sonhasse a sorrir...
Que
se sonhasse a chorar...
Ter
um sonho, que nos fosse
A
vida, a luz, o alento,
Que
a sonhar beijasse doce
A
nossa boca... um lamento...
Ser
pra nós o guia, o norte,
Na
vida o único trilho;
E
depois ver vir a morte
Despedaçar esses laços!...
...É pior que ter um filho
Que
nos morresse nos braços!

O Meu Impossível
Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É
um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A
chama onde queimar uma incerteza!
Tudo é vago e incompleto!
E o
que mais pesa
É
nada ser perfeito.
É
deslumbrar
A
noite tormentosa até cegar,
E
tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
Aos
meus irmãos na dor já disse tudo
E
não me compreenderam!...
Vão
e mudo
Foi
tudo o que entendi e o que pressinto...
Mas
se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

Simplesmente amor...
Saudades
Saudades ! Sim.. talvez... e por que não ?
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
que bem pensava vê-lo até à morte
deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer ! Para quê?... Ah! como é vão !
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
deve-nos ser sagrado como o pão!
Quantas vêzes, Amor, já te esqueci,
para mais doidamente me lembrar.
mais doidamente me lembrar de ti !
E quem dera que fôsse sempre assim:
quando menos quisesse recordar
mais a saudade andasse presa a mim !

Loucura
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu
solar, meus palácios, meus mirantes!
Não
sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das
paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não
tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura de esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó
pavoroso mal de ser sozinha!
Ó
pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro de mim!

Eu...
Eu
sou a que no mundo anda perdida,
Eu
sou a que na vida não tem norte,
Sou
a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou
a crucificada ... a dolorida ...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E
que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou
aquela que passa e ninguém vê...
Sou
a que chamam triste sem o ser...
Sou
a que chora sem saber porquê...
Sou
talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E
que nunca na vida me encontrou!
Esperas...
Não
me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
os
nossos bons e cândidos abraços!
Sou
a dona dos místicos cansaços,
A
fantástica e estranha rapariga
Que
um dia ficou presa nos teus braços...
Não
vás ainda embora, ó sombra amiga!
Teu
amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!
Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê
que pra além de mim já não há nada
E
nunca mais me encontras neste mundo!...

Esquecimento
Esse de quem eu era e que era meu,
E foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.
Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...
E desde que era meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...

Inconstância
Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

Volúpia
No
divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num
frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A
sombra entre a mentira e a verdade...
A
nuvem que arrastou o vento norte...
-
Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São
os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E
do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

Tarde de mais...
Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E para o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...
Chegaste, enfim!
Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!
Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!
E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, ó meu Amor?!...

Outonal
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio… Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago…
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento… A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago…
Outono dos crepúsculos dourados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de
amor…

Aos olhos dele
Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa;
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda a gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:
Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em
Deus!

Folhas de Rosa
Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol
Eu vou falar com elas em segredo ...
E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...
Pelo copinho de cristal e pata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que triste me deslumbra e m'embriaga
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mal fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia....

Não ser
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!
Ah! Arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! Poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro de uma flor
aberta!...

Amor que morre
O nosso amor morreu... Quem o diria?
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!
Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos pra partir.
E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro
riso
De que outro amor impossível que há-de
vir!

Teus
olhos
Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesouros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.
Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!
Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas...
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...
Berço vindo do Céu à minha porta...
Ó meu leito de núpcias irreais!...
Meu sumptuoso túmulo de
morta!...
Ao vento
O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh'alma trágica e doente
Não sabe se há de rir, se há de chorar!
Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim, sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amar,
A tua voz tortura toda a gente!...
Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim!... Ó vento, chora!
Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
Ea gente andar a rir pela vida
fora!!...

Fragmentos
Ser
poeta é ser mais alto, é ser maior
Do
que os homens! Morder como quem beija!
É
ser mendigo e dar como quem seja
Rei
do Reino de Aquém e Além Dor!
É
ter cá dentro um astro que flameja,
É
ter garras e asas de condor!
É
ter fome, é ter sede de Infinito!
É
condensar o mundo num só grito!
Beija-me as mãos, amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves, cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!...
Que
fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os
beijos que sonhei pra minha boca!

Frémito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas
mãos na tua pele Que cheira a âmbar, a baunilha e a
mel, Doido anseio dos meus braços a abraçar-te
Olhos buscando os teus por toda parte, Sede de beijos,
amargor de fel, Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada
existe que a mitigue e a farte!
E
vejo-te tão longe! Sinto a tua alma Junto da minha, uma lagoa
calma, A dizer-me, a cantar que não me amas...
E o
meu coração que tu não sentes, Vai boiando ao acaso das
correntes, Esquife negro sobre um mar de
chamas...

Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida Verdade, o
Sentimento! - E ser, depois de vir do coração, Um punhado
de cinza esparso ao vento!...
Sonhar um verso de alto pensamento, e puro como um
ritmo de oração! - E ser, depois de vir do coração, O pó,
o nada, o sonho dum momento...
São
assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais
dispersos, Com que eu iludo os outros, com que
minto!
Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e
forte, estranho e duro, Que dissesse, a chorar, isto que
sinto!

Florbela
Espanca
(1894-1930)
Florbela Espanca,
poetisa portuguesa,
autora de sonetos de acentuada sensibilidade
artística.
Traduz de forma
límpida a livre intimidade da mulher, pelo que pode
considerar-se que o recente movimento literário inspirado em
vivências femininas encontrou nela suas raízes e seu estímulo.
São reconhecidas
em suas obras influências de Antero de Quental e de Antonio
Nobre e em seu estilo se observam reminicências dos
estetecistas e parnasianos. A intensidade erótica que
transmitem seus poemas oscila entre o extremo egocentrismo, o
sublime sacrifício — com traços de Mariana Alcoforado — e os
momentos de bem-aventurança plena, na qual a fusão total com o
objeto amado a aproxima de Deus. De uma lírica emocional e
ardente, saltam ante o leitor todos os estados amorosos, desde
a ternura sincera à exaltação sensual, à tristeza dos momentos
de lucidez, à decepção, ao desencanto e ao agudo sofrimento.
As inflexões contrastantes de sua poesia não são construções
literárias e formais; originam-se na própria vivência do
arrebatador e do adverso, do narcisismo e da
anulação.
Seus versos
transportam à imensa planície do Alentejo, de onde é
originária, sempre presente e sugerida em imagens de extrema
sensibilidade e beleza. Sua primeira obra publicada foi
Livro de Mágoas (1919), a que se seguiram Livro de
Soror Saudade (1923); Juvenília (1931), que reúne a
produção poética de 1916-1917; Charneca em flor (1931),
em cuja segunda edição, desse mesmo ano, se juntaram os
sonetos Reliquiae;Cartas (1931); As máscaras
do destino e Dominó negro (contos, 1931). Foi publicado,
também, Sonetos completos, já com 24 edições. A
consciência clamorosa da solidão no amor, os excessos de
insatisfação traduzidos na ânsia de infinito, de absoluto, que
ficam mais dramáticos pela comprovação do caráter transitório
da existência, a profunda depressão causada pela morte do
irmão e o malogro de três casamentos a conduzem à desesperada
opção do suicídio, no dia em que faria 36 anos.
Fonte: Enciclopédia
Encarta 2000 - Microsoft
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