O retorno da primavera (1886)   - William Bouguereau
 
 
 
 

 
 
 

 

 
 
Cartas de Amor

  
 

Todas as cartas de amor são ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras, ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser ridículas.

Mas, afinal, só as criaturas que nunca

escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso cartas de amor ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor é que são ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos,

são naturalmente ridículas.)

(Álvaro de Campos)

 

 

Quando eu não te tinha...
  
 

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora Amo a Natureza como um monge calmo a Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima...

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até a beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim.

Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e para te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Por que ainda o sou.

(Alberto Caeiro)

 

 

Na Véspera
 
 

Na  véspera de nada ninguém me visitou.

Olhei atento a estrada durante todo o dia

Mas ninguém vinha ou via, ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar

Queira dizer que há

Outra estrada que achar,

Certa estrada que está,

Como quando da festa

Se esquece quem lá está.
 

 

 

Navegar é preciso; Viver não é preciso
 
 

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,

transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha

de ser o meu corpo e a (minha alma) e a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;

ainda que para isso tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica

do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer

a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa raça.

 

 

Não sei quantas almas tenho
 
 

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.

Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê, quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo é do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li o que julguei que senti.

Releio e digo : "Fui eu ?" Deus sabe, porque o escreveu. 

 

 

Quando estou só reconheço
 
 

Quando estou só reconheço

Se por momentos me esqueço

Que existo entre outros que são

Como eu sós, salvo que estão

Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou verdadeiramente só,

Sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida

Devidamente entendida é toda assim, toda assim.

Por isso passo por mim como por cousa esquecida. 

 

 

Amamos sempre no que temos

  
 

Amamos sempre no que temos

O que não temos quando amamos.

O barco pára, largo os remos

E, um a outro, as mãos nos damos.

A quem dou as mãos?

À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,

São os que sempre pensei dar,

E agora e minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

Da Outra.

Os remos já caíram na água,

O barco faz o que a água quer.

Meus braços vingam minha mágoa

No abraço que enfim podem ter.

Quem abraço?

A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...

Não deixe a vida que eu deseje

Mais que o que pode ser teu beijo

E poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

Os remos vão perdidos já,

O barco vai não sei para onde.

Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

Que é do sorriso

Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,

Num outro rio sem lugar

Em outro barco outra vez sós

Possamos nos recomeçar

Que talvez sejas

A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem

É sob eterna luz eterna

Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna por ser parecida

Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,

Dá-me as mãos, a boca, o ter ser.

Façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.

Nesta hora, a única,

Sê a Outra.

(Cancioneiro)

 

 

Eu amo tudo o que foi
 
 

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé,

O ontem que dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.

 

 

Poema em linha reta

  
 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
que tenho sofrido enxovalhos e calado,
que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
que, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,
arre, estou farto de semideuses! 

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

(Álvaro de Campos)

 

 

O Amor 
  
 

O amor, quando se revela, não se sabe revelar.

Sabe bem olhar p'ra ela, mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente não sabe o que há de dizer.

Fala: parece que mente. Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse, se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar...


 

 

Autopsicografia

  
 

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama o coração.

(Cancioneiro)

 

 

Vem sentar-te comigo, Lídia

  
 

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranqüilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

(Ricardo Reis)

 

 

Símbolos
  
 
Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo,
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos.
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria — pobre figura de miséria e desamparo! —Que o namorado voltasse para a costureira. 
(Álvaro de Campos)
 

 

 

Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sou o que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...

 

 

Sou Eu

  

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio! ... 
(Álvaro de Campos)


 
 
 
 
Sonho. Não sei quem sou.
  
 
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo,
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
(Cancioneiro) 
 
 
 
 
 
Pensar em Deus
  
 
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ... 

(Alberto Caeiro)
 

 

 

O guardador de rebanhos

 
VIII 
 
Num meio-dia de fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte,  tornado outra vez menino,
a correr e rolar-se pela erva e arrancar flores para as deitar fora,
e a rir de modo a ouvir-se de longe.
 
Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir-se de segunda pessoa da Trindade.
No céu, era tudo falso, tudo em desacordo com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério e de vez em quando se tornar outra vez homem e subir para a cruz, e estar sempre a morrer  com uma coroa toda roda de espinhos e os pés, espetados por um  prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura como os pretos nas ilustrações.
Nem se quer o deixavam ter pai e mãe como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas - um velho chamado José, que era carpinteiro e que não era pai dele,
E o outro pai, era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo, porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de ter. Não era mulher; era uma mala em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele que só que só nascera da mãe, e nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
 
Um dia em que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar, ele foi a caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro, fez que ninguém soubesse que ele  tinha fugido.
Com o segundo, criou-se eternamente humano e menino.
Com  o terceiro, criou um Cristo eternamente na cruz e o deixou pregado na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois, fugiu para o sol e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje, vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita, de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba frutas dos pomares,
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam,
E que toda gente acha graça,
Corre atrás das raparigas que vão em ranchos pelas estradas,
com as bilhas às cabeças e levanta-lhes as saias.
 
A mim, ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
aponta-me todas as coisas há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem nas mãos
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito-Santo, coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada.
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam á sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso, se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O menino Jesus adormece nos meus braços,
E eu o levo ao colo para casa.
 
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Ele mora comigo na minha casa, ao meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano, que é natural, 
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso, que eu sei com toda certeza, 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
 
E a criança tão humana, que é divina, 
É esta minha cotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo, que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
 
A Criança Nova que habita onde vivo,
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver, 
Saltando e cantando, e rindo, e gozando nosso segredo comum que é o de saber por toda parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
 
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar, é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas.
 
Damo-nos tão bem um com o outro,
Na companhia de tudo,
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois,
Como um acordo intimo,
Como a mão direita e a esquerda.
 
Ao anoitecer, brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
 
Depois, eu conto-lhe histórias de coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam no fundo do mar dos altos mares.
Porque ele sabe que a tudo isso, falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
W que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer os olhos e os muros caiados.
 
Depois ele adormece, e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
 
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas pro ar,
Põe uns em cima dos outros, 
E bate as palmas sozinho,
Sorrindo para o meu sono.
 
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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa,
Despe-me meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
que tu sabes qual é.
 
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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela  mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam? 
(Alberto Caeiro)
 
 
 
 
 
Horizonte
 
 
O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte --
Os beijos merecidos da Verdade.
 
 
 
 
 
 
Conselho
 
 
 
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
 
 
 
Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei-a a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

(Álvaro de Campos)
  
 
 
 
 
O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, êle mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para êles a vida vivida ou sonhada,
Para êles o sonho sonhado ou vivido,
Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
(Álvaro de Campos)
 

 
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias
sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, “é uma pedra”,
Digo da planta, “é uma planta”,
Digo de mim, “sou eu”.
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
 
 

 

 

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Seu eu adoecesse pensaria nisso.
 
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as cousa e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
 
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
 
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar frutos na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que i não sabem?
 
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um valo ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
 
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
 
O único sentido íntimo das cousas
É ela não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
 
(Isto talvez é ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende que fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
 
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora.
E a minha vida é toda uma oração e uma missa.
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
 
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
 
Pensar uma flor é vê-las e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
 
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
Sinto todo meu corpo deitado na realidade
Sei a verdade e sou feliz.
 
(Alberto Caeiro)
 
 
 
 
 

Fernando Pessoa

(1888-1935)

 

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa e foi um dos maiores poetas da língua portuguesa e um dos grandes nomes da poesia universal; está traduzido em vários idiomas.

Publicou sua obra poética com os heterônimos de: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – para os quais criou retratos físicos e dados autobiográficos - e como Fernando Pessoa "ele mesmo".

Foi um adepto da consciência estética, da racionalidade criadora, da emoção inteligente em contraposição à livre inspiração dos românticos e à escrita automática (1924) dos surrealistas.

Sua arte poética encontra-se condensada nos versos: O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.

 

Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 - Microsoft

 

 

 


  
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