Dark Beauty - (1898) - William Bouguereau 


 
 

 

 

Na Minha Terra

 

Amo o vento da noite sussurrante

A tremer nos pinheiros

E a cantiga do pobre caminhante

No rancho dos tropeiros;

 

E os monótonos sons de uma viola

No tardio verão,

E a estrada que além se desenrola

No véu da escuridão;

 

A restinga d'areia onde rebenta

O oceano a bramir,

Onde a lua na praia macilenta

Vem pálida luzir;

 

E a névoa e flores e o doce ar cheiroso

Do amanhecer na serra,

E o céu azul e o manto nebuloso

Do céu de minha terra;

 

E o longo vale de florinhas cheio

E a névoa que desceu,

Como véu de donzela em branco seio,

Às estrelas do céu.

 

II

 

Não é mais bela, não, a argêntea praia

Que beija o mar do sul,

Onde eterno perfume a flor desmaia

E o céu é sempre azul;

 

Onde os serros fantásticos roxeiam

Nas tardes de verão

E os suspiros nos lábios incendeiam

E pulsa o coração!

 

Sonho da vida que doirou e azula

A fala dos amores,

Onde a mangueira ao vento que tremula

Sacode as brancas flores,

 

E é saudoso viver nessa dormência

Do lânguido sentir,

Nos enganos suaves da existência

Sentindo-se dormir;

 

Mais formoso não é: não doire embora

O verão tropical

Com seus rubores e alvacenta aurora

Na montanha natal,

 

Nem tão doirada se levante a lua

Pela noite do céu,

Mas venha triste, pensativa — e nua

Do prateado véu —

 

Que me importa?se as tardes purpurinas

E as auroras dali

Não deram luz às diáfamas cortinas

Do leito onde eu nasci?

 

Se adormeço tranqüilo no teu seio

E perfuma-se a flor

Que Deus abriu no peito do Poeta,

Gotejante de amor?

 

Minha terra sombria, és sempre bela,

Inda pálida a vida

Como o sono inocente da donzela

No deserto dormida!

 

No italiano céu nem mais suaves

São as noites os amores,

Não tem mais fogo o cântigo das aves

Nem o vale mais flores!

 

III

 

Quando o gênio da noite vaporosa

Pela encosta bravia

Na laranjeira em flor toda orvalhosa

De aroma se inebria,

No luar junto à sombra recendente

De um arvoredo em flor,

Que Saudades e amor que influi na mente

Da montanha o frescor!

 

E quando à noite no luar saudoso

Minha pálida amante

Ergue seus olhos úmidos de gozo,

E o lábio palpitante...

 

Cheia de argêntea luz do firmamento

Orando por seu Deus,

Então... eu curvo a fronte ao sentimento

Sobre os joelhos seus...

 

E quando sua voz entre harmonias

Sufoca-se de amor,

E dobra a fronte bela de magias

Como pálida flor,

 

E a arma pura nos seus olhos brilha

Em desmaiado véu,

Como de um anjo na cheirosa trilha

Respiro o amor do céu!

 

Melhor a viração uma por uma

Vem as folhas tremer,

E a floresta saudosa se perfuma

Da noite no morrer,

 

E eu amo as flores e o doce ar mimoso

Do amanhecer da serra

E o céu azul e o manto nebuloso

Do céu de minha terra!

 

 

 

 

Tarde de Outono

 

O Poeta:

Oh!Musa, por que vieste,

E contigo me trouxeste

A vagar na solidão?

Tu não sabes que a lembrança

De meus anos de esperança

Aqui fala ao coração?

 

 

A Saudade:

De um puro amor a lânguida Saudade

É doce como a lágrima perdida

Que banha no cismar um rosto virgem,

Volta o rosto ao passado, e chora a vida.

 

O Poeta:

Não sabe o quanto dói

Uma lembrança que rói

A fibra que adormeuceu?...

Foi neste vale que amei,

Que a primavera sonhei,

Aqui minha alma viveu.

 

A Saudade:

Pálidos sonhos no passado morto

É dove reviver mesmo chorando.

A alma refez-se pura. Um vento aéreo

Parece que de amor nos vai roubando.

 

O Poeta:

Eu vejo ainda a janela

Onde à tarde junto dela

Eu lia versos de amor...

Como eu vivia d’enleio

No bater daquele seio,

Naquele aroma de flor!

 

Creio vê-la inda formosa,

Nos cabelos uma rosa,

De leve a janela abrir...

Tão bela, meu Deus, tão bela!

Por que amei tanto, donzela,

Se devias me trair ?

 

A Saudade:

A casa está deserta.A parasita

Das paredes estala a negra cor.

Os aposentos o ervaçal povoa.

A porta é franca...Entremos, trovador!

 

O Poeta:

Derramai-vos, prantos meus!

Dai-me prantos, ó meu Deus!

Eu quero chorar aqui!

Em que sonhos de ebriedade

No arrebol da mocidade

Eu nesta sombra dormi!

 

Passado, por que murchaste?

Ventura, por que passaste

Degenerando em Saudade?

Do estio secou-se a fonte,

Só ficou na minha fronte

A febre da mocidade.

 

A Saudade:

Sonha, Poeta, sonha!Ali sentado

No tosco assento da janela antiga,

Apóia sobre a mão a face pálida,

Sorrindo - dos amores à cantiga.

 

O Poeta:

Minha alma triste se enluta,

Quando a voz interna escuta

Que blasfema da esperaçança,

Aqui tudo se perdeu,

Minha pureza morreu

Com o enlevo de criança!

 

Ali amante ditoso,

Delirante, suspiroso,

Eflúvios dela sorvi.

No seu colo eu me deitava...

E ela tão doce cantava!

De amor e canto vivi!

 

Na sombra deste arvoredo

Oh! quantas vezes a medo

Nossos lábios se tocaram!

E os seios onde gemia

Uma voz que amor dizia,

Desmaiando me apertaram!

 

Foi doce nos braços teus,

Meu anjo belo de Deus,

Um instante do viver!

Tão doce, que em mim sentia

Que minh'alma se esvaía

E eu pensava ali morrer!

 

A Saudade:

É berço de mistério e d'harmonia

Seio mimoso de adorada amante.

A alma bebe nos sons que amor suspira

A voz, a doce voz de uma alma errante.

 

Tingem-se os olhos de amorosa sombra,

Os lábios convulsivos estremecem,

E a vida foge ao peito ... apenas tinge

As faces que de amor empalidecem.

 

Parece então que o agitar do gozo

Nossos lábios atrai a um bem divino:

Da amante o beijo é puro como as flores

E a voz dela é um hino.

 

Dizei-o vós, dizei, ternos amantes,

Almas ardentes que a paixão palpita,

Dizei essa emoção que o peito gela

E os frios nervos num espasmo agita.

 

Vinte anos! como tens doirados sonhos!

E como a névoa de falaz ventura

Que se estende nos olhos do Poeta

Doira a amante de nova formosura!

 

O Poeta:

Que gemer! não me enganava?

Era o anjo que velava

Minha casta solidão?

São minhas noites gozadas,

As venturas tão choradas

Que vibram meu coração?

 

É tarde, amores, é tarde;

Uma centelha não arde

Na cinza dos seios meus...

 

 

Oh! Páginas da vida que eu amava

 

Oh! Páginas da vida que eu amava,

Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado! ...

Ardei, lembranças doces do passado!

Quero rir-me de tudo que eu amava!

 

E que doudo que eu fui! como eu pensava

Em mãe, amor de irmã! em sossegado

Adormecer na vida acalentado

Pelos lábios que eu tímido beijava!

 

Embora — é meu destino.Em treva densa

Dentro do peito a existência finda

Pressinto a morte na fatal doença!

 

A mim a solidão da noite infinda!

Possa dormir o trovador sem crença

Perdoa minha mãe - eu te amo ainda!

 

 

 

É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!
 

 

É ela! É ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe murmurou — é ela!

Eu a vi... minha fada aérea e pura —

A minha lavadeira na janela!

 

Dessas águas-furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

 

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

 

Como dormia! Que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro do engomado...

Como roncava maviosa e pura!...

Quase caí na rua desmaiado!

 

Afastei a janela, entrei medroso...

Palpitava-lhe o seio adromecido...

Fui beijá-la... roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido...

 

Oh! de certo... (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores...

 

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei-a a tremer de devaneio...

 

É ela! É ela! — repeti tremendo;

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!

 

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas

Se achou-a assim mais bela — eu mais te adoro

Sonhando-te a lavar as camizinhas!

 

É ela! É ela! meu amor, minh'alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela...

É ela! É ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou — é ela!

 

 

 

Namoro a Cavalo

 

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça

Que rege minha vida malfadada,

Pôs lá no fim da rua do Catete

A minha Dulcinéia namorada.

 

Alugo (três mil-réis) por uma tarde

Um cavalo de trote (que esparrela!)

Só para erguer meus olhos suspirando

À minha namorada na janela...

 

Todo o meu ordenado vai-se em flores

E em lindas folhas de papel bordado,

Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,

Algum verso bonito... mas furtado...

 

Morro pela menina, junto dela

Nem ouso suspirar de acanhamento...

Se ela quisesse eu acabava a história

Como toda a Comédia- em casamento...

 

Ontem tinha chovido... Que desgraça!

Eu ia a trote inglês ardendo em chama,

Mas lá vai senão quando uma carroça

Minhas roupas tafues encheu de lama...

 

Eu não desanimei! Se Dom Quixote

No Rossinante erguendo a larga espada

Nunca voltou de medo, eu, mais valente,

Fui mesmo sujo ver a namorada...

 

Mas eis que no passar pelo sobrado,

Onde habita nas lojas minha bela,

Por ver-me tão lodoso ela irritada

Bateu-me sobre as ventas a janela...

 

O cavalo ignorante de namoros

Entre dentes, tomou a bofetada,

Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo

Com pernas para o ar, sobre a calçada...

 

Dei ao diabo os namoros. Escovado

Meu chapéu que sofrera no pagode,

Dei de pernas corrido e cabisbaixo

E berrando de raiva como um bode.

 

Circunstância agravante. A calça inglesa

Rasgou-se no cair, de meio a meio,

O sangue pelas ventas me corria

Em paga do amoroso devaneio!...

 

 

 

Pálida Inocência

 

Por que, pálida inocência,

Os olhos teus em dormência

A medo lanças em mim?

No aperto de minha mão

Que sonho do coração

Tremeu-te os seios assim?

 

E tuas falas divinas

Em que amor lânguida afinas

Em que lânguido sonhar?

E dormindo sem receio

Por que geme no teu seio

Ansioso suspirar?

 

Inocência! Quem dissera

De tua azul primavera

As tuas brisas de amor!

Oh! Quem teus lábios sentira

E que trêmulo te abrira

Dos sonhos a tua flor!

 

Quem te dera a esperança

De tua alma de criança,

Que perfuma teu dormir!

Quem dos sonhos te acordasse,

Que num beijo t’embalasse

Desmaiada no sentir!

 

Quem te amasse! E um momento

Respirando o teu alento

Recendesse os lábios seus!

Quem lera, divina e bela,

Teu romance de donzela

Cheio de amor e de Deus!

 

 

 

Meu Desejo

 

Meu desejo? Era ser a luva branca

Que essa tua gentil mãozinha aperta;

A camélia que murcha no teu seio,

O anjo que por te ver do céu deserta...

 

Meu desejo? Era ser o sapatinho

Que teu mimoso pé no baile encerra...

A esperança que sonhas no futuro,

As saudades que tens aqui na terra...

 

Meu desejo? Era ser o cortinado

Que não conta os mistérios de teu leito;

Era de teu colar de negra seda

Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

 

Meu desejo? Era ser o teu espelho

Que mais bela te vê quando deslaças

Do baile as roupas de escomilha e flores

E mira-te amoroso as nuas graças!

 

Meu desejo? Era ser desse teu leito

De cambraia o lençol, o travesseiro

Com que velas o seio, onde repousas,

Solto o cabelo, o rosto feiticeiro...

 

Meu desejo? Era ser a voz da terra

Que da estrela do céu ouvisse amor!

Ser o amante que sonhas, que desejas

Nas cismas encantadas de langor!

 

 

Amor

 

Amemos! Quero de amor

Viver no teu coração!

Sofrer e amar essa dor

Que desmaia de paixão!

Na tu’alma, em teus encantos

E na tua palidez

E nos teus ardentes prantos

Suspirar de languidez!

 

Quero em teus lábio beber

Os teus amores do céu,

Quero em teu seio morrer

No enlevo do seio teu!

Quero viver d’esperança,

Quero tremer e sentir!

Na tua cheirosa trança

Quero sonhar e dormir!

 

Vem, anjo, minha donzela,

Minha’alma, meu coração!

Que noite, que noite bela!

Como é doce a viração!

E entre os suspiros do vento

Da noite ao mole frescor,

Quero viver um momento,

Morrer contigo de amor!

 

 

Trindade

 

A vida é uma planta misteriosa

Cheia d’espinhos, negra de amarguras

Onde só abrem duas flores puras -

Poesia e amor...

 

E a mulher... é a nota suspirosa

Que treme d’alma a corda estremecida,

- É fada que nos leva além da vida

Pálidos de langor!

 

A poesia é a luz da mocidade,

O amor é o poema dos sentidos,

A febre dos momentos não dormidos

E o sonhar da ventura...

 

Voltai, sonhos de amor e de saudade!

Quero ainda sentir arder-me o sangue,

Os olhos turvos, o meu peito langue,

E morrer de ternura!

 

 

A Lagartixa

 

 

A lagartixa ao sol ardente vive,

E fazendo verão o corpo espicha:

O clarão dos teus olhos me dá vida,

Tu és o sol e eu sol a lagartixa.

 

Amo-te como o vinho e como o sono,

Tu és meu copo e amoroso leito...

Mas teu néctar de amor jamais se esgota,

Travesseiro não há como teu peito.

 

Posso agora viver: para coroas

Não preciso no prado colher flores;

Engrinaldo melhor a minha fronte

Nas rosas mais gentis de teus amores.

 

Vale todo um harém a minha bela,

Em fazer-me ditoso ela capricha;

Vivo ao sol de seus olhos namorados,

Como ao sol de verão a lagartixa.

 

 

Vagabundo

 

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão adoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

 

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

 

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas carvernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

 

Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz...Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...

 

Oito dias lá vão que ando cismando
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora...

 

Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

 

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

 

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

 

Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo à nossa senhora e sou vadio!

 

Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.

 

 

 

Álvares de Azevedo

(1831-1852)

 

Nascido em São Paulo, em 12 de setembro de 1831, Manuel Antônio Álvares de Azevedo é reconhecido como um dos maiores talentos do Romantismo, sendo um típico representante brasileiro da escola byroniana que se constituiu em São Paulo na metade do século XIX, juntamente com Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa. Foi um aluno prodígio, tendo se formado em Letras aos dezesseis anos e ingressado em seguida no curso da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1848. Estudou ainda latim, grego, francês, inglês e alemão. Dotado de inesgotável curiosidade intelectual, foi surpreendido pela morte antes de amadurecer devidamente. Sua obra traz os desencantos românticos, a exaltação dos sentidos extremada, a crítica à vida social conformista, tão presente no Romantismo e ainda em Werther, de Goethe, que o influenciou bastante. Não publicou quase nada em vida, vindo a falecer aos 20 anos, vítima de tuberculose, em 25 de abril de 1852. Logo em seguida, saíram as primeiras edições de suas Poesias (1853 a 1855).

 

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft


 

 

 

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