Na
Minha Terra
Amo o vento da noite sussurrante
A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;
E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;
A restinga d'areia onde rebenta
O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta
Vem pálida luzir;
E a névoa e flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;
E o longo vale de florinhas cheio
E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
Às estrelas do céu.
II
Não é mais bela, não, a argêntea praia
Que beija o mar do sul,
Onde eterno perfume a flor desmaia
E o céu é sempre azul;
Onde os serros fantásticos roxeiam
Nas tardes de verão
E os suspiros nos lábios incendeiam
E pulsa o coração!
Sonho da vida que doirou e azula
A fala dos amores,
Onde a mangueira ao vento que tremula
Sacode as brancas flores,
E é saudoso viver nessa dormência
Do lânguido sentir,
Nos enganos suaves da existência
Sentindo-se dormir;
Mais formoso não é: não doire embora
O verão tropical
Com seus rubores e alvacenta aurora
Na montanha natal,
Nem tão doirada se levante a lua
Pela noite do céu,
Mas venha triste, pensativa — e nua
Do prateado véu —
Que me importa?se as tardes purpurinas
E as auroras dali
Não deram luz às diáfamas cortinas
Do leito onde eu nasci?
Se adormeço tranqüilo no teu seio
E perfuma-se a flor
Que Deus abriu no peito do Poeta,
Gotejante de amor?
Minha terra sombria, és sempre bela,
Inda pálida a vida
Como o sono inocente da donzela
No deserto dormida!
No italiano céu nem mais suaves
São as noites os amores,
Não tem mais fogo o cântigo das aves
Nem o vale mais flores!
III
Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria,
No luar junto à sombra recendente
De um arvoredo em flor,
Que Saudades e amor que influi na mente
Da montanha o frescor!
E quando à noite no luar saudoso
Minha pálida amante
Ergue seus olhos úmidos de gozo,
E o lábio palpitante...
Cheia de argêntea luz do firmamento
Orando por seu Deus,
Então... eu curvo a fronte ao sentimento
Sobre os joelhos seus...
E quando sua voz entre harmonias
Sufoca-se de amor,
E dobra a fronte bela de magias
Como pálida flor,
E a arma pura nos seus olhos brilha
Em desmaiado véu,
Como de um anjo na cheirosa trilha
Respiro o amor do céu!
Melhor a viração uma por uma
Vem as folhas tremer,
E a floresta saudosa se perfuma
Da noite no morrer,
E eu amo as flores e o doce ar mimoso
Do amanhecer da serra
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra!

Tarde de
Outono
O Poeta:
Oh!Musa, por que vieste,
E contigo me trouxeste
A vagar na solidão?
Tu não sabes que a lembrança
De meus anos de esperança
Aqui fala ao coração?
A Saudade:
De um puro amor a lânguida Saudade
É doce como a lágrima perdida
Que banha no cismar um rosto virgem,
Volta o rosto ao passado, e chora a vida.
O Poeta:
Não sabe o quanto dói
Uma lembrança que rói
A fibra que adormeuceu?...
Foi neste vale que amei,
Que a primavera sonhei,
Aqui minha alma viveu.
A Saudade:
Pálidos sonhos no passado morto
É dove reviver mesmo chorando.
A alma refez-se pura. Um vento aéreo
Parece que de amor nos vai roubando.
O Poeta:
Eu vejo ainda a janela
Onde à tarde junto dela
Eu lia versos de amor...
Como eu vivia d’enleio
No bater daquele seio,
Naquele aroma de flor!
Creio vê-la inda formosa,
Nos cabelos uma rosa,
De leve a janela abrir...
Tão bela, meu Deus, tão bela!
Por que amei tanto, donzela,
Se devias me trair ?
A Saudade:
A casa está deserta.A parasita
Das paredes estala a negra cor.
Os aposentos o ervaçal povoa.
A porta é franca...Entremos, trovador!
O Poeta:
Derramai-vos, prantos meus!
Dai-me prantos, ó meu Deus!
Eu quero chorar aqui!
Em que sonhos de ebriedade
No arrebol da mocidade
Eu nesta sombra dormi!
Passado, por que murchaste?
Ventura, por que passaste
Degenerando em Saudade?
Do estio secou-se a fonte,
Só ficou na minha fronte
A febre da mocidade.
A Saudade:
Sonha, Poeta, sonha!Ali sentado
No tosco assento da janela antiga,
Apóia sobre a mão a face pálida,
Sorrindo - dos amores à cantiga.
O Poeta:
Minha alma triste se enluta,
Quando a voz interna escuta
Que blasfema da esperaçança,
Aqui tudo se perdeu,
Minha pureza morreu
Com o enlevo de criança!
Ali amante ditoso,
Delirante, suspiroso,
Eflúvios dela sorvi.
No seu colo eu me deitava...
E ela tão doce cantava!
De amor e canto vivi!
Na sombra deste arvoredo
Oh! quantas vezes a medo
Nossos lábios se tocaram!
E os seios onde gemia
Uma voz que amor dizia,
Desmaiando me apertaram!
Foi doce nos braços teus,
Meu anjo belo de Deus,
Um instante do viver!
Tão doce, que em mim sentia
Que minh'alma se esvaía
E eu pensava ali morrer!
A Saudade:
É berço de mistério e d'harmonia
Seio mimoso de adorada amante.
A alma bebe nos sons que amor suspira
A voz, a doce voz de uma alma errante.
Tingem-se os olhos de amorosa sombra,
Os lábios convulsivos estremecem,
E a vida foge ao peito ... apenas tinge
As faces que de amor empalidecem.
Parece então que o agitar do gozo
Nossos lábios atrai a um bem divino:
Da amante o beijo é puro como as flores
E a voz dela é um hino.
Dizei-o vós, dizei, ternos amantes,
Almas ardentes que a paixão palpita,
Dizei essa emoção que o peito gela
E os frios nervos num espasmo agita.
Vinte anos! como tens doirados sonhos!
E como a névoa de falaz ventura
Que se estende nos olhos do Poeta
Doira a amante de nova formosura!
O Poeta:
Que gemer! não me enganava?
Era o anjo que velava
Minha casta solidão?
São minhas noites gozadas,
As venturas tão choradas
Que vibram meu coração?
É tarde, amores, é tarde;
Uma centelha não arde
Na cinza dos seios meus...

Oh!
Páginas da vida que eu amava
Oh! Páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado! ...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!
E que doudo que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!
Embora — é meu destino.Em treva densa
Dentro do peito a existência finda
Pressinto a morte na fatal doença!
A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença
Perdoa minha mãe - eu te amo
ainda!

É
Ela! É Ela! É Ela! É Ela!
É ela! É ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adromecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! — repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela — eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camizinhas!
É ela! É ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

Namoro a Cavalo
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil-réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado,
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado...
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia- em casamento...
Ontem tinha chovido... Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafues encheu de lama...
Eu não desanimei! Se Dom Quixote
No Rossinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes, tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair, de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...

Pálida Inocência
Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Inocência! Quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! Quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
-
Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!
Quem te amasse! E um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!

Meu
Desejo
Meu desejo? Era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta;
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta...
Meu desejo? Era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra...
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra...
Meu desejo? Era ser o cortinado
Que não conta os mistérios de teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.
Meu desejo? Era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!
Meu desejo? Era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro...
Meu desejo? Era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de
langor!

Amor
Amemos! Quero
de amor
Viver no teu
coração!
Sofrer e amar
essa dor
Que desmaia de
paixão!
Na tu’alma, em
teus encantos
E na tua
palidez
E nos teus
ardentes prantos
Suspirar de
languidez!
Quero em teus
lábio beber
Os teus amores
do céu,
Quero em teu
seio morrer
No enlevo do
seio teu!
Quero viver
d’esperança,
Quero tremer e
sentir!
Na tua
cheirosa trança
Quero sonhar e
dormir!
Vem, anjo,
minha donzela,
Minha’alma,
meu coração!
Que noite, que
noite bela!
Como é doce a
viração!
E entre os
suspiros do vento
Da noite ao
mole frescor,
Quero viver um
momento,
Morrer contigo
de amor!

Trindade
A vida é uma
planta misteriosa
Cheia
d’espinhos, negra de amarguras
Onde só abrem
duas flores puras -
Poesia e
amor...
E a mulher...
é a nota suspirosa
Que treme
d’alma a corda estremecida,
- É fada que
nos leva além da vida
Pálidos de
langor!
A poesia é a
luz da mocidade,
O amor é o
poema dos sentidos,
A febre dos
momentos não dormidos
E o sonhar da
ventura...
Voltai, sonhos
de amor e de saudade!
Quero ainda
sentir arder-me o sangue,
Os olhos
turvos, o meu peito langue,
E morrer de
ternura!

A Lagartixa
A lagartixa ao
sol ardente vive,
E fazendo
verão o corpo espicha:
O clarão dos
teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e
eu sol a lagartixa.
Amo-te como o
vinho e como o sono,
Tu és meu copo
e amoroso leito...
Mas teu néctar
de amor jamais se esgota,
Travesseiro
não há como teu peito.
Posso agora
viver: para coroas
Não preciso no
prado colher flores;
Engrinaldo
melhor a minha fronte
Nas rosas mais
gentis de teus amores.
Vale todo um
harém a minha bela,
Em fazer-me
ditoso ela capricha;
Vivo ao sol de
seus olhos namorados,
Como ao sol de
verão a lagartixa.

Vagabundo
Eu
durmo e vivo ao sol como um cigano, Fumando meu cigarro
vaporoso; Nas noites de verão adoro estrelas; Sou pobre,
sou mendigo e sou ditoso!
Ando roto, sem
bolsos nem dinheiro; Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas, E quem vive de amor não
tem pobreza.
Não invejo
ninguém, nem ouço a raiva Nas carvernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam Os reflexos
do baile fascinante.
Namoro e sou
feliz nos meus amores; Sou garboso e rapaz...Uma criada
Abrasada de amor por um soneto Já um beijo me deu
subindo a escada...
Oito dias lá
vão que ando cismando Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente! Desconfio que a moça
me namora...
Tenho por meu
palácio as longas ruas; Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta, E o vinho faz sonhar
com os amores.
O degrau das
igrejas é meu trono, Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta, E a preguiça a mulher por
quem suspiro.
Escrevo na
parede as minhas rimas, De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras Abro meu peito ao
sol e durmo à lua.
Sinto-me um
coração de lazzaroni; Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos... Rezo à nossa
senhora e sou vadio!
Ora, se por aí
alguma bela Bem doirada e amante da preguiça Quiser a
nívea mão unir à minha, Há de achar-me na Sé, domingo, à
missa.

Álvares de
Azevedo
(1831-1852)
Nascido em São Paulo, em 12 de setembro de
1831, Manuel Antônio Álvares de Azevedo é
reconhecido como um dos maiores talentos do Romantismo, sendo
um típico representante brasileiro da escola byroniana que se
constituiu em São Paulo na metade do século XIX, juntamente
com Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa. Foi um aluno
prodígio, tendo se formado em Letras aos dezesseis anos e
ingressado em seguida no curso da Faculdade de Direito de São
Paulo, em 1848. Estudou ainda latim, grego, francês, inglês e
alemão. Dotado de inesgotável curiosidade intelectual, foi
surpreendido pela morte antes de amadurecer devidamente. Sua
obra traz os desencantos românticos, a exaltação dos sentidos
extremada, a crítica à vida social conformista, tão presente
no Romantismo e ainda em Werther, de Goethe, que o
influenciou bastante. Não publicou quase nada em vida, vindo a
falecer aos 20 anos, vítima de tuberculose, em 25 de abril de
1852. Logo em seguida, saíram as primeiras edições de suas
Poesias (1853 a 1855).
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
|
|